Pular para o conteúdo principal

Postagens

Mostrando postagens de outubro, 2023

Iugonostalgia:Tito e as Sombras da Iugoslávia

DE MOSTAR - Para quem vem de terras longínquas como eu, ir de Sarajevo para Belgrado não é mistério. Pelo contrário, é mesmo perto e recomendável. Aproveitei o período de mobilidade em Sarajevo para ficar um mês em Belgrado, antiga capital da Iugoslávia - não podia perder essa chance. Afinal, nasci em uma época curiosa em que a Iugoslávia era entendida como o meio do caminho, entre o mundo desenvolvimento e o mundo em desenvolvimento, o chamado países do segundo mundo. Em Belgrado, o frio fazia com o que o dia estivesse maravilhoso. O murmúrio da vida cotidiana me trouxeram uma sensação inesperada de nostalgia, aquele tempo que não volta mais, mas está ali em algum registro da nossa história. Não é uma saudade qualquer, mas uma nostalgia cheia de camadas e ambiguidades, uma espécie de iugonostalgia, saudade da antiga Iugoslávia. Um país que, embora não exista mais, ainda paira sobre a memória coletiva da região e de muitos como eu que tiveram a oportunidade de acompanhar a Iugoslávia p...

O Legado de Gazi Husrev Bey na Jerusalém da Europa: Sarajevo

DE SARAJEVO - Hoje resolvi sair para um passeio a pé com um colega local da Universidade. Foi uma dessas manhãs claras que se desdobram lentamente, como se o tempo estivesse de acordo com a cidade, suave e sem pressa. Fomos fazer uma caminhada e à medida que a conversa fluía entre cafés e palavras, ele, com seu entusiasmo característico, começou a falar sobre a história da cidade. Eu, de certa forma, já sabia o essencial, mas o que ele me disse em frente à imponente mesquita de Gazi Husrev Bey mexeu comigo de uma maneira que ainda não consegui definir completamente. Gazi Husrev Bey não era apenas um nome, mas uma presença tangível, um pilar. Nascido em Serres, ele não apenas liderou expedições militares e expandiu os domínios do Império Otomano em regiões distantes, como Croácia e Hungria, mas também, e talvez mais importante, deixou uma marca profunda na Sarajevo moderna. Uma marca feita de pedras, tijolos e, de certa forma, de destino. Foi ali, em frente à sua mesquita, que meu amigo...

O Enigma Bósnio: Democracia, Étnica e o Peso das Sombras

DE SARAJEVO - Há algo de profundamente paradoxal na política da Bósnia e Herzegovina. É um país que existe sob o signo de um acordo de paz, mas onde a paz, em certos momentos, parece mais uma trégua administrativa do que uma reconciliação verdadeira. O sistema político bósnio não é simplesmente complicado, ele é deliberadamente intrincado, como um mecanismo de relojoaria projetado para evitar que os ponteiros voltem a marcar a hora da guerra. O Alto Representante, figura quase orwelliana, personifica esse paradoxo. Nomeado por instâncias internacionais, ele tem o poder de demitir políticos, revogar leis e até intervir em instituições locais. É uma autoridade que não emana do voto, mas do trauma. E, no entanto, essa tutela externa é ao mesmo tempo um remédio e um sintoma: a comunidade internacional, que ajudou a parar o conflito, ainda não confia plenamente na capacidade dos bósnios de governarem-se sem supervisão. Há quem diga que o cargo é necessário; há quem murmure que é um veto dis...

A Música que Transita Entre o Ocidente e o Oriente em Sarajevo

  DE SARAJEVO - Em Sarajevo, esta cidade onde as ruas respiram história e as culturas se encontram em uma dança eterna, a música parece ser uma das formas mais poderosas de traduzir a alma de um povo. Foi num desses momentos de descoberta inesperada que fui seduzido por uma melodia suave enquanto degustava uma sopa quente e alguns ustipčići, um prato simples, mas reconfortante. O ambiente do restaurante, acolhedor e familiar, era o lugar ideal para um encontro casual com algo novo, algo que a cidade queria me mostrar. A música, que me parecia vinda de tempos passados, estava ali, fluindo suavemente entre os arranjos modernos e as raízes profundas de um passado turco-bálcânico. Ao perguntar à moça que nos servia, ela sorriu e me disse, como quem compartilha um segredo antigo: "É Dino Merlin, um cantor muito querido aqui na Bósnia". Aquelas palavras marcaram o início de uma jornada musical que, sem eu saber, me levaria a entender mais sobre a Bósnia do que qualquer livro ou his...

As lápides que falam ladino em Sarajevo

DE SARAJEVO - O vento cortante das montanhas balcânicas levanta a poeira do cemitério judeu mais antigo dos Balcãs. Caminho entre lápides que descem a colina de Kovači como um rebanho de pedras cansadas. De repente, paraliso: ali, gravado no mármore musgoso, brilha o nome "PEREIRA". Mais adiante, "CARDOZO" emerge sob líquenes. Depois "BENVENISTE". São sílabas familiares em terra estranha, ecos de um Portugal e Espanha que estas ossadas carregaram no exílio. Coloco a mão sobre as letras gélidas. Neste instante, cinco séculos desmoronam. Foi em 1492, enquanto Colombo navegava para o desconhecido, que os primeiros navios de judeus sefarditas expulsos pela ânsia purificadora dos Reis Católicos atracaram em Dubrovnik. O sultão otomano Bayezid II, pragmático e visionário, enviou sua frota ao resgate. Diz a lenda que ao ouvir notícias da expulsão, comentou: "Vocês chamam Fernando de sábio? Ele empobrece seu reino para enriquecer o meu!". Assim chegaram ...

O Violoncelista de Sarajevo: O Som da Resistência

DE SARAJEVO - Em 1992, no cerne de uma Sarajevo sitiada pela brutalidade da guerra, um homem fazia da sua música uma forma de resistência, um ato de coragem que, de alguma maneira, transcendia a barbárie à sua volta. O violoncelista de Sarajevo era muito mais que um músico, era um símbolo da capacidade humana de encontrar beleza mesmo nas situações mais desoladoras. A história de Vedran Smailović, transformada na ficção de O Violoncelista de Sarajevo , de Steven Galloway, é uma das mais poderosas metáforas da guerra e da paz. Em meio ao caos dos bombardeios, dos snipers que ceifavam vidas a qualquer momento, o som de um violoncelo tocando o Adágio de Albinoni se tornava, como o próprio autor descreve, uma afirmação da vida diante da morte. Ele tocava por todos os que haviam perdido suas vidas naquele massacre brutal, em uma homenagem aos 22 mortos de um bombardeio indiscriminado. Essa música ressoava como um grito silencioso de resistência, como uma forma de se recusar a ser silenciad...

O General Jovan Dviak: A Memória Viva de Sarajevo

DE SARAJEVO - Quando, em 2013, desembarquei pela primeira vez em Sarajevo, mal sabia que a cidade me reservava uma das mais comoventes surpresas da minha vida. Era uma tarde de primavera, a cidade respirava tranquilidade, e a Avenida Marechal Tito se desenrolava à minha frente com sua rotina vibrante e marcada pela história. A guia que me acompanhava, uma mulher que parecia carregar no olhar toda a carga emocional de uma cidade que nunca parou de sofrer, interrompeu nosso passeio com uma frase que, até aquele momento, não fazia sentido para mim. “Você sabe quem é aquele senhor?” Ela indicou um homem idoso saindo de um mercado, com sacolas nas mãos, andando lentamente pela calçada. Eu olhei na direção que ela apontava, mas não fazia ideia de quem se tratava. Ela ficou atônita por um momento, como se tivesse sido invadida por uma memória que transbordava em emoção. Então, com um brilho nos olhos, ela disse: “É o general Jovan Dviak. Um herói da guerra.” Sua voz vacilou por um segundo, co...

A Bósnia e as Epistemologias Locais: Reflexões de Coimbra para Sarajevo

DE SARAJEVO - Quando estudei em Coimbra, Boaventura de Sousa Santos era uma referência central em nosso Centro de Estudos. Suas aulas magnas, sempre visitadas com intensidade pelos coelgas, despertaram em mim uma visão mais crítica e profunda sobre o mundo. Aqui em Sarajevo, essas lições adquiriram um contorno particular, especialmente ao me deparar com a complexidade multicultural e pós-conflito da Bósnia. Na Universidade, assim que cheguei e mencionei Boaventura em alguma conversa um dos professores que me acolheu logo perguntou: "Você se refere ao Picasso da Sociologia?" Em tom de grande admiração. Não sabia que ele era lembrado e comentado na Bósnia, o que nos faz pensar a respeito de como um trabalho, teória, escrito, texto, enfim, obra, pode impactar pessoas de diferentes formas ao redor do mundo.  Enfim, conversamos muito sobre Boaventura até chegar ao conceito de "epistemologias do Sul", uma das bandeiras do professor Boaventura que me fazia refletir ali, na...

Uma Inspiração diplomática na Bósnia: Sérgio Vieira de Mello

DE SOKOLAC - Quando decidi me aventurar pelos labirintos das relações internacionais, no distante ano de 2001, era quase inevitável que uma figura como Sérgio Vieira de Mello se tornasse uma referência, fonte de inspiração. Naquela época, ainda imaturo, mal compreendia a profundidade das palavras “missão de paz” ou “humanidade”, peacebuilding ou qualquer outro termo das RI, mas algo nele me tocava e dava perspectiva, visão. Talvez fosse o olhar de um homem que não se limitava a defender um país ou uma ideologia, mas se dedicava àquilo que ele considerava ser o maior de todos os serviços: a construção de um mundo melhor, mais justo, mais humanitário. Pouco pensei em ser diplomata ao longo de meus estudos, pois havia um anseio pelas Nações Unidas, ainda que com o passar do tempo isso tenha tomada outras direções. Sérgio, com seu sorriso discretamente seguro e sua postura serena, possuía algo que transcendia a diplomacia tradicional para mim. Não era apenas um diplomata, não era apenas um...