DE SARAJEVO — O inverno de 2023 trouxe neve e um silêncio inquietante para os vales da Bósnia, mas também revelou para mim uma realidade menos visível: a das milhares de pessoas que atravessam montanhas e fronteiras em busca de um futuro na Europa. Nos últimos anos, a Bósnia tornou-se um corredor crucial para migrantes e refugiados, principalmente do Oriente Médio, África e Ásia, transformando-se num palco onde dramas humanos se desenrolam entre as cicatrizes de uma guerra passada e as divisões étnicas ainda por sarar.
A chegada destes novos habitantes — muitos deles em trânsito, outros "encalhados" num limbo legal — forçou o país a confrontar-se com questões profundas sobre identidade, solidariedade e a própria natureza de uma nação ainda definida por fronteiras invisíveis. De acordo com a Organização Internacional para as Migrações (OIM), mais de 40.000 migrantes passaram pela Bósnia em 2023, com cerca de 7.000 ainda no país no início de 2024 2. Muitos estão concentrados em cantões como Una-Sana, perto da fronteira com a Croácia, onde campos superlotados e condições desumanas testemunham a incapacidade do país para gerir uma crise que é, em grande medida, europeia. Em Sarajevo, não consigo perceber essa realidade. Caminho diariamente pelo centro, vejo a fumaça dos carros, dos café e dos cigarros e somente quando observo as notícias da Europa é que me deparo com essa situação. É uma realidade que não se vê, quase silenciosa, mas está ali, como as marcas e cicatrizes que entre um cruzamento e outro já até consigo me acostumar ou ignorar estando tanto tempo na Bósnia. Será que perdi a capacidade de me indignar ou internalizei as feridas? Enfim, dificilmente posso me acostumar ou internalizar, pois não vivi ou vivenciei os periodos de conflito aqui. Era uma criança em um povoado distante daqui, mas lembro de ouvir e ver o noticiário a respeito da Bósnia naquela época.
O campo de Vucjak, nas proximidades de Bihać, tornou-se um símbolo desta crise migratória. Instalado num antigo aterro de lixo, próximo de campos minados, o local não tem água corrente nem electricidade, e as temperaturas no inverno descem abaixo de zero. A ONU classificou as suas condições como "desumanas", e a União Europeia exigiu o seu encerramento. No entanto, a Bósnia é um labirinto político onde é difício de ver uma responsabilidade compartilhada. A governação disfuncional do país, dividida entre a Federação Croata-Bósnia e a República Sérvia, complica ainda mais a resposta. Decisões sobre abertura de centros de acolhimento são bloqueadas por autoridades locais, como aconteceu com o centro de Bira, renovado com fundos da UE mas mantido vazio devido à oposição de residentes e políticos.
Para os bósnios, a presença destes migrantes é um espelho perturbador do seu próprio passado. Muitos ainda recordam os deslocados da guerra dos anos 90, e a dor de uma diáspora que deixou o país com menos 20% da sua população desde 1991. Agora, veem outros a chegar, não para ficar, mas para passar. As interações são mínimas, marcadas por desconfiança e curiosidade. Os imigrantes estão aqui, mas não estão entre as pessoas, pois eles não ficam, passam. É como se fossem fantasmas à espera de seguir viagem.
Esta desconexão é alimentada por narrativas políticas que instrumentalizam a migração. Líderes nacionalistas, especialmente na República Sérvia, usam o fluxo migratório para alimentar temores sobre segurança e identidade étnica, enquanto que, na Federação, alguns actores políticos defendem uma abordagem mais humanitária, reflectindo clivagens pré-existentes. A retórica anti-imigração ressoa entre quem teme que a já frágil economia bósnia seja sobrecarregada, ainda que os números sugiram que o impacto económico é marginal: entre 2010 e 2019, apenas 6.488 pessoas obtiveram residência permanente no país.
Porém, há histórias de resistência e solidariedade. Organizações locais, como a Vasa Prava BiH, lutam para fornecer assistência jurídica a detidos em centros como o de Lukavica, perto de Sarajevo, onde migrantes enfrentam detenções prolongadas sem acesso adequado a advogados ou informações sobre os seus casos. Em 2023, a Bósnia concedeu estatuto de refugiado a poucas pessoas, e protecção subsidiária a números que reflectem uma política de asilo restritiva e burocrática.
A questão fundamental que se coloca é se esta crise está a reconfigurar a identidade bósnia. Por um lado, a presença de migrantes reforça fronteiras étnicas internas, com cada grupo a reagir de acordo com a sua experiência histórica. Por outro, a exposição a estas novas comunidades — mesmo que transitórias — obriga a uma reflexão sobre o que significa ser um país ponte, um espaço de passagem entre Oriente e Ocidente. A Bósnia, ela própria uma nação forjada por diásporas e deslocamentos, vê-se agora a lidar com o mesmo dilema que a Europa enfrenta: como equilibrar segurança e humanidade, medo e compaixão. Será que se Bósnia tivesse integrada, ainda que regionalmente, essa situação poderia ser evitada ou minimizada?
À medida que a UE considera a Bósnia como um potencial "hub de retorno" para migrantes rejeitados, o risco é que o país se torne num depósito de pessoas, aprofundando as suas fracturas internas. Mas também há sinais de esperança: iniciativas de base, muitas vezes lideradas por jovens, procuram construir pontes, organizando distribuição de comida ou aulas de língua. No fundo, a grande pergunta é se não conseguirmos ser humanos com quem sofre, o que restará da nossa própria humanidade?
A nova fronteira da Bósnia não está nas suas montanhas ou rios, mas na capacidade de reconciliar um passado de guerra com um presente de passagem, e de encontrar, na complexidade da migração, uma oportunidade para redefinir o que significa pertencer a um lugar que é, ele próprio, um mosaico de identidades.
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