DE SARAJEVO - A primeira neve do inverno cobriu os telhados de Sarajevo com um manto silencioso, escondendo sob a sua brancura as cicatrizes que a guerra gravou na pedra e na memória. Estava fora da capital e havia retornado há poucos dias. Um estudante estrangeiro com um caderno na mão e a ingenuidade de quem acredita que os mapas se desenham apenas em papel. Nesta altura, já havia aprendido que a verdadeira cartografia da Bósnia é invisível, um labirinto de fronteiras étnicas e feridas históricas que se estendem muito para além dos acordos de paz de Dayton.
Caminhar pelas ruas de Sarajevo é sempre uma lição de geografia humana. Não importa quantas vezes faça, sempre estará cercado de lições. Na rua Ferhadija, o alfabeto muda subtilmente do latino para o cirílico, e os cafés, embora cheios de um murmúrio comum, parecem agrupar-se em torno de bandeiras invisíveis. Os jovens bebem os seus kavas e cervejas, mas as conversas, por vezes, evitam os mesmos temas que os seus pais evitam. Dayton, em 1995, parou as balas, mas em troca consagrou uma divisão étnica que se infiltrou na alma do país, criando uma Federação Croata-Muçulmana e uma República Sérvia que coexistem sob o mesmo céu, mas nem sempre sob a mesma nação.
Na universidade, onde passei meses em pesquisa, a divisão era mais subtil, mas não menos presente. Colegas brilhantes, sérvios, croatas e bósnios, debatiam teoria política com um fervor académico e muita emoção. Eu tive uma colega bósnia, jovem, que diariamente se emocionava com um tema, poesia, música, palestra, autor. Era realmente autêntico e por vezes queria sentir aquela intensidade com a qual ela vivenciava as coisas. Sempre há duas, por vezes três, narrativas, partilhando os lugares. Um professor, nas entrelinhas pode dizer: "Ensinamos a mesma história, mas com diferentes silêncios." Estes são as fronteiras que não estão nos rios ou nas montanhas, mas no modo como se evita uma região, se pronuncia um nome ou se recorda uma data.
Fora da capital, a cartografia do conflito torna-se mais nítida. As placas de sinalização para a Republika Srpska surgem como uma divisa informal, um lembrete de que o país ainda pulsa segundo o ritmo étnico estabelecido por Dayton. Eu cheguei a presenciar algumas ameaças secessionistas, não como um ruído distante, mas como um tremor que todos sentiam. Vi manifestações, paradas militares e muito simbolismo, vivo, nas placas, sinais, nos carros, nas pessoas. Claro, nem todas, mas é possível observar quando se viaja pelo país. A paz aqui é uma planta frágil, regada pela comunidade internacional e vigiada por uma força militar ténue, a EUFOR, cuja presença é ao mesmo vez um conforto e um lembrete de uma instabilidade latente, mas vejo paz nas pessoas, no local.
E, no entanto, no meio deste panorama de divisão, há uma resistência silenciosa, teimosa. Conheci artistas que criam espaços onde as identidades não são barreiras, empresários que investem do outro lado da fronteira étnica e jovens que se recusam a ser definidos pela categoria que lhes foi atribuída à nascença. Isso é muito bonito e alimenta a esperança que a gente diz ser a única que morre, não é?
A guerra na Ucrânia, no horizonte, trouxe um novo espectro para a Bósnia. A possibilidade de um reacender de conflitos, o jogo de influências de potências externas – a Rússia a apoiar os sonhos sérvios, o Ocidente a tentar manter o frágil status quo – adicionou uma camada de ansiedade geopolítica ao já complexo puzzle étnico. A concessão do estatuto de candidato à UE em 2024 foi um farol de esperança, mas muitos duvidam que a luz chegue a todos os cantos deste país fracturado, principalmente pela demora.
Agora a neve derrete lá fora, revelando novamente as marcas da cidade. Sarajevo, com a sua resiliência trágica e beleza melancólica, é um microcosmo da Bósnia: um lugar onde o passado é uma presença constante, mas onde o futuro teima em tentar nascer. A verdadeira fronteira a ser transposta não é a que separa entidades políticas, mas a que divide as memórias. E esse é um mapa que só o tempo, e talvez a coragem de uma nova geração, poderá redesenhar.
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