DE DONJI AGIĆI - Passar esses meses na Bósnia é testemunhar, a cada esquina e em cada comunidade, o esforço silencioso de reconstrução social. As cidades e vilarejos carregam cicatrizes visíveis da guerra — prédios marcados por balas, ruas que preservam buracos de bombas, placas que lembram os desaparecidos —, mas também revelam a determinação das pessoas em recuperar não apenas a economia, mas a confiança perdida. É nesse cenário que florescem iniciativas sociais, cooperativas locais e projetos de solidariedade que, embora pequenos, carregam o peso de uma esperança coletiva.
Durante minhas visitas, tive a oportunidade de conhecer cooperativas agrícolas em regiões periféricas do país, de norte a sul. Produtores locais, de diversas idades, me receberam com sorrisos e orgulho, mostrando os produtos cultivados, os processos de organização comunitária e a importância de trabalhar juntos para criar oportunidades de renda. Em um pequeno centro de agricultura comunitária, um agricultor explicou: “Não temos grandes empresas, mas temos nossa força, nossa união. Aqui aprendemos a confiar uns nos outros de novo.” A frase, simples, resumia o sentido dessas iniciativas: não se trata apenas de economia, mas de resgatar laços sociais, confiança e solidariedade em um país onde a fragmentação e a desconfiança ainda marcam relações cotidianas.
Em Donji Agići, visitei uma cooperativa que faz um trabalho fantástico, muito além da produção e do que uma cooperativa, em geral, proporciona. Promovem workshops, cursos e atividades comunitárias. Jovens de diferentes origens étnicas participam lado a lado, aprendendo habilidades, discutindo projetos e, mais importante, reconstruindo relações que a guerra havia corroído. Conversando com os coordenadores, percebi como cada projeto, por menor que seja, atua como um catalisador de coesão social. Eles falam de dificuldades financeiras, burocracias e limitações, mas também de pequenas vitórias: uma criança aprendendo a pintar, um grupo de mulheres vendendo produtos locais juntos, uma oficina que reúne jovens para discutir desafios da cidade. Cada iniciativa é, em essência, uma tentativa de criar o que alguns chamam de “economia da esperança”: não apenas gerar riqueza, mas gerar sentido, confiança e pertencimento. Eu chamo de comunidade, o que mais estou interessado nesses últimos anos.
A experiência mais marcante talvez tenha sido em Rapovac, Bratunac, muito perto de Srebenica, um grupo de mulheres se reune em uma cooperativa multiétnica feminina. Me emocionei do início ao fim da visita, pois o que mais percebi foi a vontade de superar divisões históricas. Em uma reunião comunitária, vi jovens de diferentes bairros — sérvios, croatas e bósnios muçulmanos — sentados juntos, debatendo estratégias para vender produtos agrícolas e organizar feiras locais. A cordialidade era palpável, mas havia também consciência da fragilidade dessa paz cotidiana (aqui me refiro ao conceito de Mac Ginty). Cada projeto, por mais bem-intencionado, enfrenta o desafio de manter o engajamento, lidar com limitações econômicas e superar preconceitos históricos, sem falar das dificuldades burocráticas e limitações institucionais. Ainda assim, a dedicação e o entusiasmo das pessoas deixam claro que a reconstrução social é possível, mesmo em um contexto fragmentado. Tudo isso vindo de baixo, do local, das pessoas.
Andar por esses espaços comunitários revela algo essencial: a verdadeira reconstrução da Bósnia não depende apenas de tratados, políticas ou investimentos internacionais, mas da capacidade de seus habitantes de criar laços de confiança, compartilhar recursos e reconstruir uma ética de cuidado mútuo. A “economia da esperança” não é utópica; é concreta, baseada em ações diárias que fortalecem a coesão social e lembram que o futuro do país depende de cada indivíduo que escolhe acreditar na colaboração. Estando aqui, não chamo de economia de esperança, economica social, mas prefiro entender como economia comunitária. Ela é feita em conjunto, pensando em quem compra e quem vende, como um todo.
Ao final de cada visita, refletia sobre a lição central dessa experiência: em uma Bósnia ainda marcada por memórias de violência e desconfiança, a reconstrução começa nas pequenas ações — um projeto comunitário, uma cooperativa agrícola, uma oficina de aprendizado compartilhado. É nessas iniciativas que a esperança se materializa, mostrando que a economia não é apenas números ou mercados, mas relações, confiança e solidariedade. E, talvez, seja justamente essa capacidade de reinventar o cotidiano que poderá sustentar uma paz duradoura. É na responsividade que reside o elo entre a paz e a comunidade.
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