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A Sombra da Guerra: Como a Memória Molda a Política Externa da Bósnia

DE MOSTAR — O peso da história na Bósnia não se mede apenas nos cemitérios ou nos edifícios marcados pelas balas. Ele habita os corredores do poder, assombra as relações diplomáticas e dita os ritmos de uma política externa definida por uma pergunta incessante: como reconciliar justiça com sobrevivência? Vinte e oito anos após o fim da guerra, a memória do conflito ainda é uma ferida aberta que sangra nas relações com os vizinhos e nas negociações com as potências internacionais.

A guerra de 1992-1995 não terminou com os Acordos de Dayton; congelou-se. Essa é a sensação que se tem ao falar com diplomatas, académicos e cidadãos comuns na Bósnia de hoje. A justiça — ou a falta dela — tornou-se o eixo invisível em torno do qual gira a política externa do país. Para a Bósnia, a busca por reconhecimento do genocídio de Srebrenica e dos crimes de guerra não é apenas uma questão moral; é uma batalha identitária.

As relações com a Sérvia e a Croácia são o exemplo mais claro desse "efeito vingança" transformado em diplomacia. Belgrado e Zagreb são, simultaneamente, parceiros económicos necessários e antagonistas políticos. A Sérvia, cujo governo nunca reconheceu plenamente o genocídio de Srebrenica, é vista com desconfiança. A negação do genocídio por parte de líderes sérvio é entendida em Sarajevo como uma extensão da mesma lógica que alimentou a guerra.

Do outro lado, a Croácia, embora menos vocal na negação, também é alvo de desconfiança. O seu apoio político aos croatas da Bósnia, que por vezes alimentam projectos divisionistas, é visto como uma interferência perigosa. Talvez não seja fácil negociar com Zagreb e Belgrado, pois ao tempo em que é preciso ter uma boa relação com os vizinhos, sabe-se que cada encontro guarda uma memória específica e mágoas. 

A justiça internacional, especialmente o Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia (TPIJ), deixou um legado ambíguo. Por um lado, condenou crimes e deu voz a algumas vítimas; por outro, a percepção de impunidade para muitos criminosos de guerra ou as sentenças consideradas demasiado brandas alimentou a sensação de que a justiça foi incompleta. Essa frustração transborda para a política externa: a Bósnia sente-se, muitas vezes, sozinha na luta pelo reconhecimento total dos seus traumas.

As potências internacionais, por sua vez, são vistas através dessa lente traumática. A Rússia é acusada de alimentar o separatismo sérvio-bósnio, enquanto os Estados Unidos e a União Europeia são criticados pela sua abordagem por vezes inconsistente. A UE, em particular, é simultaneamente uma esperança de futuro e uma fonte de frustração. A promessa de integração europeia é usada como incentivo para reformas, mas muitos bósnios questionam se Bruxelas compreende a complexidade das suas divisões étnicas. É como pensar que Dayton é a solução para o Ocidente, mas para a Bósnia sente-se uma impressão de gaiola. Talvez é pensar que está tudo parado aguardando um porvir que não vem. 

O "efeito vingança" não se manifesta apenas em gestos grandiosos; está nos detalhes. Nas comemorações de Srebrenica, onde líderes internacionais são julgados pela sua presença ou ausência. Nas negociações sobre energia ou infraestruturas, onde questões técnicas escondem desconfianças históricas. Até no futebol: um jogo entre a Bósnia e a Sérvia é mais do que um evento desportivo; é um campo de batalha simbólico.

Mas há também sinais de uma reconciliação frágil. Novas gerações de diplomatas e activistas tentam construir pontes, focando-se no futuro económico comum ou em projectos culturais conjuntos. A integração na UE é, para muitos, a única narrativa suficientemente poderosa para superar o passado. Ademais, faz certo sentido, assim como a própria integração dos Bálcãs como um bloco economico e de cooperação nos moldes de muitos outros. 

No final, a política externa da Bósnia é um exercício de equilíbrio impossível: honrar a memória das vítimas sem ficar refém do ódio; buscar justiça sem fechar as portas à reconciliação; negociar com quem um dia foi inimigo, sem esquecer quem se é. A vingança é um fogo que consome quem o acende. A justiça — essa sim — é uma semente. Mas aqui, ainda estamos à espera que ela cresça. A Bósnia representa um espaço único de convivência que molda as relações comunitárias pós-conflito para o mundo. Como se o mundo pudesse se enxergar ali toda vez que necessitar de entrar ou sair de um conflito. Reside aí uma grande importância do país. 

A sombra da guerra é longa, e a Bósnia ainda aprende a caminhar dentro dela.



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