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A Arquitetura da Guerra: Como a Bósnia Está Reconstruindo Seu Passado

DE SARAJEVO — Mais um dia a caminhar e refletir nas ruas de Sarajevo entre o bairro onde estou a viver e a Universidade. Cada edificação conta uma história de resistência, dor e reconciliação incompleta. Vinte e oito anos após o fim da guerra, a Bósnia ainda luta para reconstruir não apenas seus edifícios, mas também a tessitura social rasgada pelo conflito. A arquitetura, aqui, é muito mais que concreto e pedra: é um espelho das divisões étnicas, um testemunho silencioso da violência e um palco onde se desenrola a complexa relação entre memória e esquecimento.

Em Sarajevo, a capital, os edifícios danificados são parte da paisagem urbana. Fachadas crivadas de balas convivem com construções modernas, criando um contraste visceral entre o passado traumático e um presente que tenta se reinventar. A Biblioteca Nacional, incendiada em 1992 durante o cerco, é talvez o símbolo mais potente dessa dualidade. Reconstruída meticulosamente, sua fachada renasceu, mas os interiores abrigam agora exposições que lembram a destruição deliberada de um património que outrora simbolizava a convivência multicultural. A impressão que tenho é de que se reconstroi os edifícios, mas não as almas. Por isso, acredito que alguns edifícios permanecem danificados. Aguardam a reconstrução maior e mais profunda: a das almas.

O urbanismo pós-guerra reflecte a divisão política consagrada pelo Acordo de Dayton. Em Mostar, a icónica Ponte Velha (Stari Most), destruída por artilharia croata em 1993, foi reconstruída em 2004 com apoio da UNESCO e tornou-se um símbolo de reconciliação internacional. No entanto, a cidade permanece dividida: a margem oriental é predominantemente bosníaca (muçulmana), e a ocidental é croata (católica). A avenida que as separa é uma fronteira invisível, onde os habitantes raramente cruzam para o "outro lado". A ponte, embora bela, é mais um monumento ao turismo que à integração real.

Em Sarajevo, espaços públicos como a Praça da Liberdade (Trg Oslobođenja) foram redesenhados para promover uma identidade comum, mas o resultado é ambíguo. Cafés modernos e galerias de arte proliferam, enquanto murais com nomes de vítimas lembram o custo humano do conflito. Jovens artistas usam edifícios abandonados como telas para grafitis que criticam a corrupção e o nacionalismo, transformando ruínas em manifestações políticas. As balas nas paredes são também monumentos não oficiais, penso eu. Como não se pode apagar o passado, eles ali decidiram como lembrar.

A tensão entre memória e apagamento é visível na forma como o Estado lida com o património danificado. Na Republika Srpska, entidade sérvia da Bósnia, edifícios destruídos são frequentemente demolidos e substituídos por estruturas modernas que ignoram a história pré-guerra. Em contraste, na Federação Croata-Bósnia, há um esforço maior para preservar marcas do conflito como alerta contra a repetição da violência. Esta divergência reflecte narrativas opostas: para muitos sérvios, a guerra foi um conflito civil; para bosníacos, foi um genocídio planeado. Ao redor do mundo podemos pensar em situações semelhantes. Por essa razão, entendo a Bósnia como um exemplo vivo e presente do que é um cenário vivo de pré-conflito-pós.

O papel da comunidade internacional é crucial, mas por vezes contraditório. Organizações como a UE e a UNESCO financiam a reconstrução de monumentos históricos, como a Mesquita de Ferhadija em Banja Luka, destruída em 1993 e reinaugurada em 2016. No entanto, projectos de habitação para retornados—muçulmanos que tentam voltar a regiões hoje dominadas por sérvios—são frequentemente sabotados por pressões políticas locais. Quer dizer, reconstruir uma casa é fácil, já reconstruir a confiança é quase impossível. Os exemplos do interior do país demonstram uma vontade e necessidade maior do que dos tomadores de decisões, mas tudo é muito relativo. 

Talvez a expressão mais crua da arquitectura da guerra esteja nos cemitérios. Colinas inteiras em Sarajevo e Srebrenica estão cobertas de lápides brancas, que se expandem anualmente com novos corpos identificados por peritos forenses. Estes cemitérios-monumento são lugares de peregrinação e protesto, onde a arquitectura minimalista—cruzes e estelas islâmicas alinhadas—fala mais alto que qualquer discurso político.

A Bósnia ainda não encontrou uma linguagem arquitectónica comum para honrar seu passado. Enquanto isso, a geração mais jovem—cansada de divisões—apropria-se de espaços abandonados. Em Sarajevo, o antigo complexo olímpico de Zetra, destruído durante o cerco, foi transformado num centro desportivo e cultural. Em Mostar, uma fábica de armas abandonada acolhe agora um festival de arte urbana. São gestos de resistência criativa, que buscam reinterpretar a herança da guerra sem a negar.

A reconstrução na Bósnia é, assim, um processo fragmentado e politizado. Cada pedra recolocada, cada edifício restaurado ou deixado em ruínas, é uma declaração sobre quem merece ser lembrado e quem pode ser esquecido. A arquitetura é a última fronteira da guerra: não pela força das armas, mas pelo direito de definir a memória. A verdadeira reconstrução—aquela que reconcilia—ainda está por vir, e talvez exija mais que cimento e argamassa: exige que se olhe para as cicatrizes e se veja não apenas o que foi perdido, mas o que pode ainda ser construído juntos.



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