DE SARAJEVO - Há uma ironia histórica profunda no facto de a Bósnia e Herzegovina, um país cuja identidade foi forjada na encruzilhada de impérios, hoje lutar por um lugar numa Europa que hesita em abraçá-la. Cheguei aqui como estudante de mestrado para investigar o processo de integração europeia, um tema que parece abstracto em Bruxelas mas é visceral nas ruas de Sarajevo. O que encontrei foi um labirinto político onde a esperança e o ceticismo coexistem, onde os fantasmas de Dayton assombram cada passo em direcção à União Europeia, e onde os cidadãos—especialmente os jovens—veem na Europa não apenas um projecto económico, mas uma promessa de normalidade.
A jornada da Bósnia em direcção à UE é única porque é, em si mesma, um teste à capacidade de expansão e aos valores fundamentais da União. O país apresentou a sua candidatura em 2016, mas o processo arrasta-se num emaranhado de condições e reformas que parecem, por vezes, desenhadas para uma realidade paralela. A arquitectura política criada pelos Acordos de Dayton em 1995—que pôs fim à guerra mas consagrou divisões étnicas—transformou a Bósnia num Estado complexo com 14 governos regionais, uma presidência tripartida e uma administração tão fragmentada que, como me disse um diplomata europeu, "Bruxelas nem sempre sabe com quem falar".
O coração do desafio está na exigência de reformas constitucionais que eliminem discriminações étnicas—especialmente a controversa disposição que impede judeus, ciganos e outros minoritários de concorrer à presidência. Esta questão, simbólica e prática, revela o dilema central: como pode a UE aceitar um membro que, na sua lei fundamental, contradiz o princípio de igualdade? Em Sarajevo, conheci activistas como Dervo Sejdić, cujo caso no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem em 2009 condenou esta discriminação, mas cuja implementação esbarra na resistência de líderes étnicos que temem perder privilégios. "A Europa exige mudanças, mas não oferece incentivos claros", explica um professor de direito. "É como pedir a um doente para se operar a si próprio."
A economia é outro campo minado. A Bósnia tem uma taxa de desemprego de 15%, que sobe para 30% entre os jovens. A corrupção endémica e uma classe política que beneficia do status quo dificultam reformas essenciais. No entanto, há sinais de progresso: o acordo de estabilização e associação com a UE já permitiu avanços em áreas como a gestão de fronteiras e a adaptação legislativa. E há uma geração nova—fluente em inglês, conectada digitalmente, menos presa a divisões étnicas—que vê na UE uma escapatória ao nacionalismo estéril. Em cafés de Sarajevo, jovens empreendedores mostram-me startups de tech que desafiam a narrativa de estagnação. "A Europa é mais do que fundos", diz uma jovem desenvolvedora. "É about being part of a system where rules work."
O papel da sociedade civil é crucial. Organizações como o "Why Not?" monitorizam o processo de integração com um rigor que por vezes falta ao governo. E a midia independente, apesar de pressionada, mantém viva a chama do accountability. Mas a sombra de interesses geopolitéticos externos—especialmente da Rússia e de certos países do Golfo, que alimentam divisões internas—complica o panorama. A UE, por sua vez, vacila entre a expansão como projecto estratégico e o alargamento fatigue que domina capitais como Paris ou Haia.
A minha pesquisa académica aqui tornou-se uma lição de realismo esperançoso. Visitei instalações da EUFOR, a missão militar europeia que mantém uma presença simbólica mas vital, e entrevistei políticos que alternam entre o discurso pró-europeu e a prática clientelista. A verdade é que a integração da Bósnia não é apenas sobre aderir à UE; é sobre redefinir o contrato social de um país. E a Europa, se quiser ser credível, tem de equilibrar a exigência com apoio tangible—investimento em infraestruturas, acesso a programas como Erasmus+, e uma perspectiva clara de adesão.
Como me disse um idoso em Mostar: "Dayton trouxe paz, mas não nos tornou normais. A Europa pode devolver-nos a normalidade." O processo de integração é, assim, o segundo acto da paz—mais lento, menos dramático, mas igualmente decisivo. A Bósnia ensina à Europa que o alargamento não é um exercício burocrático, mas um teste aos seus próprios valores. E que, por vezes, os países mais fracturados são aqueles que mais precisam do projecto europeu—e que mais podem enriquecê-lo.
Esta crónica baseia-se na investigação académica do autor no âmbito do mestrado em Estudos Europeus. Nomes e detalhes foram preservados por razões de segurança.
Para ler a dissertação de mestrado: https://dspace.uevora.pt/rdpc/bitstream/10174/36014/1/Mestrado-Relacoes_Internacionais_e_Estudos_Europeus-Rui_Samarcos_Lora.pdf
Comentários
Postar um comentário