DE MOSTAR - Trinta anos após o fim da guerra que matou mais de 100 mil pessoas e deixou um rastro de destruição física e moral, a Bósnia-Herzegovina ainda caminha sobre o fio da navalha entre a reconciliação e a fragmentação. Cheguei aqui como estudante em mobilidade académica, esperando analisar os processos de justiça de transição, mas deparei-me com uma realidade onde o passado não é apenas história: é uma presença viva, que molda cada aspecto da sociedade, da política ao tecido social. A justiça de transição, concebida para curar feridas, parece muitas vezes ampliá-las, num país onde a verdade judicial convive com a negação política e a dor das vítimas é instrumentalizada por elites que preferem o conflito à conciliação.
O Acordo de Dayton, assinado em 1995, trouxe o fim dos combates, mas cristalizou divisões étnicas que hoje impedem a construção de um futuro comum. A arquitectura política que criou duas entidades autónomas – a Federação Croata-Muçulmana e a República Srpska – transformou a justiça num campo de batalha ideológico. Na República Srpska, líderes políticos bloqueiam sistematicamente investigações sobre crimes de guerra, suspendem cooperação com o tribunal central e aprovam leis que negam o genocídio de Srebrenica, onde mais de 8 mil homens e meninos muçulmanos foram executados. Este revisionismo não é meramente simbólico: tem impactos tangíveis. Mais de 8.000 casos de desaparecidos permanecem por resolver, e famílias aguardam há décadas por respostas que não chegam, enquanto o Instituto de Pessoas Desaparecias vê seu financiamento ser cortado, reduzindo capacidade de exumações e identificações. A justiça, aqui, é geográfica: depende do lado da fronteira étnica onde se nasceu.
O Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia (TPIY) foi um farol de esperança, responsável por condenar 91 indivíduos, incluindo altos comandantes militares e políticos. Mas seu legado é ambíguo. Por um lado, estabeleceu verdades jurídicas incontestáveis, como o reconhecimento do genocídio de Srebrenica pelo Tribunal Internacional de Justiça. Por outro, tornou-se alvo de narrativas pós-transicionais que distorcem sua obra: na Sérvia e entre sérvios bósnios, o TPIY é frequentemente retratado como um tribunal político, vingativo e anti-sérvio. Este revisionismo não é espontâneo: é alimentado por elites que buscam escapar à responsabilidade histórica e reavivar nacionalismos. O caso recente de Stanisic e Simatovic, que confirmou o envolvimento do Estado sérvio em crimes na Bósnia, foi quase ignorado pelos média na Sérvia, enquanto na República Srpska é activamente negado. A justiça, quando não é acompanhada por um processo social de reconciliação, torna-se letra morta.
Os tribunais domésticos, como o Tribunal da Bósnia-Herzegovina, tentaram preencher as lacunas, condenando 326 pessoas a mais de 3.475 anos de prisão. Mas enfrentam obstáculos quase intransponíveis: a dupla nacionalidade de suspeitos – que usam fronteiras porosas para escapar à justiça –, atrasos processuais crónicos e a falta de vontade política. O caso de Novak Đukić, acusado do massacre de Kapija em Tuzla, é exemplar: sucessivos adiamentos devido à sua saúde alimentam a percepção de impunidade. Para as vítimas, a justiça não é uma abstractização legal: é o direito de saber onde estão os entes queridos, de ver os culpados julgados e de receber compensações que permitam reconstruir vidas destruídas. Sobreviventes de violência sexual, em particular, enfrentam estigmatização dupla: são ignoradas pelo Estado e ostracizadas pelas próprias comunidades, especialmente na República Srpska, onde seu estatuto de vítimas da guerra é questionado.
A justiça de transição na Bósnia não é apenas sobre tribunais; é sobre memória. E a memória é disputada com uma ferocidade que reflects as fracturas ainda abertas. Enquanto organizações da sociedade civil usam sentenças judiciais para desenvolver programas educativos e promover uma cultura de paz 2, líderes políticos distorcem narrativas para alimentar divisões. A recente Resolução das Nações Unidas que reconhece o genocídio de Srebrenica foi recebida com protestos e rejeição pela assembleia sérvia 2, mostrando como a história permanece um arsenal político. A justiça, nestas condições, torna-se um processo não linear, onde avanços jurídicos são seguidos de retrocessos políticos.
O papel da comunidade internacional é paradoxal. De um lado, o Alto Representante para a Bósnia-Herzegovina e a EUFOR Althea mantêm uma frágil estabilidade. Do outro, a União Europeia, que concedeu à Bósnia estatuto de candidato, vê suas condicionais – como a reforma judicial – serem sabotadas por interesses étnicos 67. O Conselho Judicial e Prosecutorial do país, destinado a garantir independência, é alvo de captura política, com orçamentos fragmentados em 14 fontes diferentes que tornam a judiciary refém do poder executivo. A confiança pública na justiça é das mais baixas da Europa, com apenas 19% dos cidadãos acreditando no sistema, um dado que fala volumes sobre o divórcio entre instituições e sociedade.
Três décadas depois, a Bósnia ensina que a justiça de transição não é um evento, mas um processo geracional. Requer mais do que tribunais: exige educação, memória colectiva e vontade política. Enquanto estive aqui, encontrei vítimas que recusam silenciar-se e jovens que constroem pontes entre comunidades. Mas também testemunhei como a justiça pode ser minada por aqueles que temem a verdade. O caminho à frente é incerto: a crise institucional aprofunda-se, e a retórica separatista da República Srpska ameaça desfazer o frágil equilíbrio de Dayton 6. Mas a alternativa à justiça – o esquecimento – é moralmente insustentável. Como me disse um sobrevivente em Srebrenica: "Sem justiça, a paz é apenas um cessar-fogo. E cessar-fogos, como a história nos mostra, têm prazo de validade." A Bósnia não precisa de mais promessas; precisa de coragem para enfrentar o passado e construir um futuro onde a justiça não seja privilégio de alguns, mas direito de todos.
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