DE SARAJEVO - Há lugares onde o peso da história se sente não só nos monumentos quebrados ou nos edifícios crivados de balas, mas no próprio ar que se respira. Cheguei à Bósnia como estudante em mobilidade académica, esperando estudar a reconstrução pós-guerra através de livros e gráficos. Mas a verdadeira lição veio das ruas, dos cafés, dos cinemas e dos olhares daqueles que carregam memórias que muitos de nós só conhecemos através de ecrãs distantes. A Bósnia é um país de contrastes profundos, onde a dor e a beleza coexistem com uma intensidade rara, e onde a cultura—o cinema, a literatura, a arte—não é um luxo, mas uma necessidade vital, uma forma de exorcizar fantasmas e reencontrar a humanidade perdida.
Caminhar por Sarajevo é percorrer um palimpsesto de culturas e conflitos. A herança otomana mistura-se com o legado austro-húngaro, e em cada esquina há um lembrete do cerco dos anos 90, que durou quase quatro anos e definiu uma geração. Mas é precisamente nesta cidade ferida que o pulso cultural bate com mais força. O Festival de Cinema de Sarajevo, nascido em pleno cerco, é talvez o exemplo máximo desta resistência. Aqui, não se projectam apenas filmes; projecta-se esperança. Directores como Jasmila Žbanić e Danis Tanović não procuram apenas contar histórias de guerra—eles exploram a complexidade moral do ser humano em tempos de extremos. "Quo Vadis, Aida?" não é apenas um relato do massacre de Srebrenica; é um estudo sobre escolhas impossíveis e a sombra da culpa. E é nesta nuance que reside a força do cinema bósnio: ele recusa simplificações, tal como o povo que retrata.
A literatura, por sua vez, actua como uma espécie de terapia colectiva. Nos cafés de Sarajevo, onde o café é servido na tradição otomana e a conversa flui tão densa como o aroma, encontrei jovens poetas e romancistas que usam as palavras para curar feridas antigas. Miljenko Jergović, com a sua prosa irónica e multifacetada, consegue ao mesmo tempo criticar as divisões étnicas e celebrar a singularidade cultural bósnia. A famosa Hagadá de Sarajevo, um manuscrito judaico que sobreviveu à Inquisição, aos nazis e à guerra dos anos 90, tornou-se um símbolo poderoso desta resistência através da cultura. É como se cada livro, cada poema, fosse um acto de desafio contra o esquecimento.
E depois há a arte que invade os espaços públicos—os muros grafitados, as performances improvisadas, a música que ecoa nas ruas de Mostar, onde a reconstrução da ponte antiga simboliza não apenas um feito de engenharia, mas a tentativa dolorosa de reunir o que foi dividido. A sevdalinka, essa canção tradicional que mistura melancolia e paixão, é o soundtrack perfeito para este país. Ela fala de perda e amor, de saudade e resiliência. E bandas como o Dubioza Kolektiv pegam nessa herança e injectam-lhe uma dose de protesto punk, criticando a corrupção e o nacionalismo estéril que ainda assombram o país.
Vivi aqui tempo suficiente para entender que a Bósnia não é um caso de estudo—é um espelho. Um espelho que reflecte o pior e o melhor de que somos capazes. Conheci sobreviventes que recusam o ódio, jovens que lutam por um futuro além das divisões étnicas, artistas que transformam a dor em algo belo. A minha mobilidade académica tornou-se uma jornada humana, e aprendi que a cultura, nas suas múltiplas formas, é o mais poderoso antídoto contra a desumanização. A Bósnia ensina-nos que, mesmo depois do pior, a arte pode ser a semente de um novo começo. E isso é uma lição que o mundo, hoje mais do que nunca, precisa de ouvir.
Mas permitam-me aprofundar: a cultura bósnia pós-guerra é também um acto de subtileza política. As artes visuais, por exemplo, não se limitam a murais ou galerias. As estelas medievais (stećci) espalhadas pelo campo são testemunhos silenciosos de uma história multicultural que remonta à Idade Média, e hoje são Património Mundial da UNESCO. Em Sarajevo, a galeria ARS AEVI—um projecto iniciado durante o cerco—reúne obras de artistas internacionais que doaram peças em solidariedade, criando um museu que é um manifesto contra o isolamento. Até a arquitectura fala: a Biblioteca Nacional, reconstruída pedra sobre pedra após ser queimada em 1992, é mais do que um edifício; é uma declaração de que o conhecimento sobrevive à barbárie.
Na música, a sevdalinka não é apenas nostalgia; é uma expressão de "sehvat", esse conceito intraduzível que significa algo entre o destino e a aceitação. E quando bandas como o Dubioza Kolektiv a sampleiam em canções de protesto, estão a bridgear séculos de história com a raiva da geração pós-guerra, que luta contra o desemprego e a corrupção. São vozes que ecoam desde os cafés de Baščaršija até aos festivais de verão, onde jovens de todas as etnias dançam juntos—um cenário impensável há duas décadas.
E o cinema? É uma ferramenta de justiça memorativa. O Festival de Sarajevo não é apenas um evento; é um tributo aos que projectaram filmes à luz de velas durante o cerco. E realizadores como Aida Begić, com seu "Snijeg" (Neve), mostram que a guerra não termina com um acordo de paz—ela ecoa nas famílias que ficaram, nas mulheres que reconstroem comunidades, nas crianças que herdam silêncios.
Até a gastronomia é um palco de memória: o cevapi lembra a influência otomana, o burek da guerra tornou-se um símbolo de sobrevivência (com farinha e água, alimentou uma cidade sitiada), e os vinhos de Herzegovina ganham prémios internacionais—mais um sinal de renascimento.
Minha experiência académica aqui transcendera a teoria: entrevistei sobreviventes que se tornaram artistas, convivi com estudantes que usam a arte para dialogar com o passado, e entendi que a Bósnia não quer piedade—quer ser entendida na sua complexidade. A mobilidade internacional nesta região não é sobre estudar "um caso pós-conflito"; é sobre testemunhar a tenacidade da vida.
Como escreveu o Nobel iugoslavo Ivo Andrić: "Dos fracos não reza a história". Mas a Bósnia prova o contrário: da fragilidade nasce uma resiliência cultural que não só reza a história como a reinventa. Este país, entre montanhas e memórias, ensina que a cultura é o último refúgio da humanidade—e sua maior esperança.
Esta crónica é dedicada aos artistas anónimos da Bósnia, que day after day transformam feridas em veredas de futuro.
Comentários
Postar um comentário