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O Peso da Memória: Voltar a Srebrenica

DE SREBRENICA – A primeira vez que vim a Srebrenica foi há dez anos. Acompanhado por um amigo, chegámos numa tarde de verão muito parecida com esta de 2023. Lembro-me do silêncio pesado que se instalou no carro à medida que nos aproximávamos, da paisagem idílica das montanhas da Bósnia Oriental que parecia ironicamente tranquila. Nada – nem os livros, nem os relatórios, nem mesmo o poderoso filme Quo Vadis, Aida? que mais tarde viria a estudar – me preparou para o que senti ao pisar aquele solo. Foi um choque mudo e profundo, uma sensação física de estar num lugar onde o ar itself é diferente, mais denso, carregado por uma memória de horror que é quase tangível.

Uma década depois, regressei. E, para meu espanto, a primeira sensação foi exactamente a mesma: uma ligeira falta de ar, uma aura pesada que envolve o vale de Srebrenica logo à entrada. É algo que os livros de história não transmitem: a física do sofrimento, a geografia do trauma. O Memorial de Potočari, com as suas mais de oito mil lápides de mármore branco alinhadas num verde imaculado, é de uma beleza cortante. A ordem e o silêncio são avassaladores. É o contrário do caos e do barulho que ali aconteceram em julho de 1995, e essa dissonância é o que mais custa ao espírito.

Desta vez, procurei não apenas ver, mas ouvir. A conversa com Meho, um sobrevivente que agora trabalha no centro, foi diferente de qualquer estudo académico. As suas palavras não eram teoria; eram fantasma e carne. Ele falava com uma calma devastadora, os olhos a perderem-se por vezes para além de mim, fixando-se num ponto distante onde o passado ainda está vivo. "Você viu o filme?", perguntou-me, referindo-se a Quo Vadis, Aida?. "A sala de onde a Aida tira os homens...", ele fez uma pausa, engoliu seco, "...era aqui ao lado." O seu dedo apontou para uma porta. O corpo ficou frio. A barreira entre o cinema e a realidade desfez-se num instante. Nenhuma representação, por mais brilhante que seja, consegue capturar o eco do desespero que ainda ressoa naquelas paredes.

A grande lição de voltar a Srebrenica depois de uma década é perceber que o tempo não cura tudo. Ele organiza, tenta dar sentido, cria rituais de luto. Mas a ferida, para a comunidade e para o local, permanece aberta e crua. A negação do genocídio por parte de líderes políticos na Bósnia e na Sérvia é como sal esfregado nessa mesma ferida, um ato de violência continuado que impede qualquer cicatrização genuína.

Sair de Potočari é sempre um alívio e uma culpa. Respira-se melhor ao deixar para trás aquele campo de dor, mas carrega-se o peso de ter estado num local onde a humanidade falhou redondamente e de voltar para o mundo, onde a vida continua, normal. A estrada de volta a Sarajevo parece sempre mais longa. O silêncio no carro já não é o de antes da chegada; é um silêncio pensativo, carregado de um respeito doloroso. Srebrenica ensina-nos que a pior fronteira não é a que separa países ou etnias, mas a que existe entre quem sabe o que aconteceu e quem consegue verdadeiramente sentir o seu peso. E essa, talvez, seja uma fronteira que nunca conseguiremos totalmente transpor.

Memorial de Srebrenica


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