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O Solo Dividido: Semear o Futuro num País de Agricultura Fragmentada

DE SARAJEVO – O escritório da FAO em Sarajevo fica perto do bairro onde estou a viver. É uma caminhada muito agradável que muitas vezes tinha dificuldade imaginar tudo aquilo em guerra. Atravessava o rio que dividia a cidade, naquele ponto, entre duas forças. Pois bem, a FAO ficava do outro lado do rio. Lá dentro, longe do frio cortante do início de 2024, o ar estava quente e cheirava a café forte, uma herança otomana que permanece como uma das poucas coisas que unem este país complexo e que me enche o peito de boas memórias e lembranças. Fui recebido por um oficial sénior cujo rosto descontraído escondia uma paixão teimosa pelas relações sociais. Me ofereceu um café e ali no restaurante conversamos um bom e longo tempo. 

“A agricultura na Bósnia”, começou ele, servindo o café numa pequena chávena, “é o espelho mais fiel do nosso país. E, infelizmente, é um espelho partido.” A sua explicação foi uma viagem pela geografia fracturada da produção alimentar. O Acordo de Dayton, que pacificou o país, também consagrou a divisão administrativa. O resultado? Dois sistemas agrícolas separados, quase paralelos: um na Federação da Bósnia e Herzegovina e outro na Republika Srpska (RS). “Temos duas políticas agrícolas, dois ministérios, dois conjuntos de subsídios, e muitas vezes, duas estratégias que competem entre si em vez de se complementarem”, explicou, com um suspiro de frustração. Essa história praticamente se repetia de modo diverso em todos os cantos que vou.

A mão dele percorreu um mapa cheio de riscas coloridas. “Veja aqui. Um agricultor no cantão de Una-Sana, na Federação, pode receber um subsidio para o gado leiteiro que é diferente do que o seu vizinho, do outro lado de uma colina que já é a RS, recebe. Isto cria assimetrias, injustiças percebidas e uma incapacidade de criar uma marca coesa ‘Made in B&H’ para exportação. Como podemos competir no mercado europeu se nem sequer somos um mercado único internamente?”

Fora da janela do seu escritório, via-se a cidade encravada entre montanhas. Dragan falou das montanhas como outra fronteira, não étnica, mas logística. “As estradas são más, o transporte é caro. Um produtor de maçãs no Vale de Vrbas, com uma colheita fantástica, tem enormes dificuldades em escoá-la para os mercados de Sarajevo, quanto mais para a Croácia ou Sérvia. Perde-se qualidade, perde-se dinheiro, perde-se esperança.” Esta fragmentação logística, aliada à fragmentação política, estrangula o potencial de uma terra fértil e de um povo que conhece a agricultura há gerações.

A conversa derivou para os números. “A população rural está a envelhecer. Os jovens fogem para as cidades ou para a Alemanha. Quem fica herda pequenas parcelas de terra, muitas vezes fragmentadas devido às leis de herança. Um homem pode ter um campo aqui, outro a dez quilómetros, impossibilitando uma agricultura mecanizada e eficiente.” Ele falava de um êxodo silencioso, tão prejudicial quanto a guerra, que vai deixando o campo vazio e a despensa nacional mais pobre.

Mas no meio deste panorama desafiante, ele insistiu em mostrar um fio de esperança. “A FAO e outros parceiros tentam actuar como pontes. Literalmente. Unimos associações de agricultores de diferentes entidades, promovemos feiras onde todos podem participar, mostramos que cooperar é mais lucrativo do que dividir.” Ele contou algumas historias e iniciativas de sucesso. Não é fácil, óbvio, pois a desconfiança inicial era palpável. Mas o sucesso comercial falou mais alto. Eles perceberam que, no fim do dia, a terra não tem bandeira étnica. Isso me remete exatamente ao propósito de minha pesquisa aqui e ao conceito de responsividade em Amitai Etzioni que muito tenho interesse. 

Ao despedir-me, entendi que o solo da Bósnia é fértil. O que precisa é de ser semeado com uma vontade política que ainda não chegou. Precisam de um acordo de Dayton para a agricultura, algo que una em vez de separar. Saí do edifício da FAO e o ar frio de Sarajevo pareceu carregado de um novo significado. As montanhas ao redor não eram apenas uma barreira geográfica, mas um símbolo do maior desafio do país: superar as divisões que os homens criaram e redescobrir a unidade que a terra sempre ofereceu.

Vou tomar mais um café aqui perto e retornar ao gabinete da Universidade. 



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