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O Acordo de Dayton e Seus Limites

DE SARAJEVO - Já se passaram semanas desde que me instalei em Sarajevo, e a cidade, com seu ritmo lento, ruas estreitas e cafés iluminados pelo dourado do outono, se tornou um laboratório constante de observação e reflexão. A paz formal, garantida pelo Acordo de Dayton, parece sólida no papel: edifícios reconstruídos, placas oficiais indicando a divisão entre Federação da Bósnia e Herzegovina e República Srpska, presidência tríplice. No entanto, caminhar pelas ruas, sentar-se nos cafés, ouvir conversas ao acaso, perceber os olhares cautelosos e, por vezes, desconfiados, é perceber que a paz vivida e a paz decretada nem sempre coincidem. A cidade carrega cicatrizes que nem mesmo o tempo consegue suavizar totalmente, e a arquitetura — reconstruída, mas marcada por balas e bombardeios — é uma testemunha silenciosa dessa tensão.

Em encontros com estudantes universitários, jovens artistas e comerciantes, percebi a distância entre a promessa de Dayton e a realidade cotidiana. Um estudante me contou, entre goles de café turco, como evita discutir política com amigos de outra etnia: “Não é que não possamos conversar, é que sabemos onde essas conversas podem terminar”, disse, sorrindo com cautela. A coexistência institucionalizada, estruturada em torno de limites rígidos de poder, protege minorias, mas reforça a fragmentação. A presidência tríplice, pensada como mecanismo de equilíbrio, cria, paradoxalmente, uma governança lenta e muitas vezes paralisada. As decisões políticas caminham devagar, enquanto a vida das pessoas exige dinamismo, interação e confiança mútua. As estruturas do Acordo de Dayton garantem estabilidade, mas não conseguem prescrever solidariedade, afetos ou vínculos sociais genuínos.

Mais além, em Mostar, a Ponte Velha — reconstruída com cuidado, símbolo de resistência e reconstrução — contrasta com a realidade escolar e social da cidade. Crianças de diferentes etnias frequentam escolas separadas, e pequenas iniciativas comunitárias tentam, com dificuldade, preencher o vácuo deixado pela política formal. Vi cooperativas funcionando como microcosmos de esperança: jovens de diferentes origens aprendendo a trabalhar juntos, construindo produtos, gerando renda e, sobretudo, criando laços de confiança. Esses espaços informais mostram que a transformação social não depende apenas de tratados, mas da coragem de indivíduos e comunidades em desafiar divisões históricas e construir algo novo.

Viver na Bósnia, como pesquisador em mobilidade acadêmica, é entender a dualidade do Acordo de Dayton: ele estabilizou um território à beira do colapso e assegurou direitos mínimos, mas também cristalizou rivalidades, incentivou a burocracia e perpetuou uma espécie de imobilismo político. Cada conversa, cada gesto cotidiano, revela a tensão entre o que o papel prevê e o que a vida exige. É nos cafés, nos mercados, nos encontros culturais e nas cooperativas que se percebe a verdadeira medida da paz: não nos tratados, mas nos vínculos construídos, na capacidade de conviver com memórias dolorosas e, ainda assim, olhar para o outro com respeito e curiosidade.

O efeito de Dayton sobre a juventude é particularmente interessante. Muitos cresceram sem vivenciar o conflito diretamente, mas carregam seus reflexos: desconfiança natural, narrativas familiares de perda, cuidado com símbolos e rituais étnicos. Conversando com grupos de jovens, ouvi relatos de tentativas de colaboração e diálogos culturais, mas também de frustrações com a política, que mantém limites artificiais entre comunidades. Há espaço para a esperança, mas ela exige iniciativa individual e coletiva — algo que o acordo formal não oferece automaticamente.

Em Sarajevo, percorrendo bairros periféricos e centros históricos, percebi que o verdadeiro teste de Dayton não está nas instituições, mas na capacidade de as pessoas construírem relações diárias de confiança e cooperação. A política formal pode criar estruturas de poder, equilibrar interesses e evitar guerras abertas, mas a integração social exige coragem, ética e disposição para enfrentar memórias dolorosas. É nesse espaço entre o institucional e o vivido que se mede o sucesso ou fracasso de qualquer acordo de paz.

Assim, o Acordo de Dayton permanece como um marco histórico e político admirável, uma engenhosa arquitetura de poder e estabilidade, mas também como um lembrete de seus limites: a paz formal, por mais sofisticada, não substitui a construção diária de confiança, empatia e solidariedade. A Bósnia mostra que é possível viver com paz, mas que ela exige esforço contínuo, criatividade e comprometimento — elementos que nenhum tratado pode garantir por si só. Em cada conversa, em cada rua percorrida, a lição é clara: a paz é um exercício diário, e Dayton é apenas um ponto de partida.

Cerimônia de assinatura em Paris, 14 de dezembro de 1995


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