DE SARAJEVO — A primeira vez que vi Sarajevo sob a neve, pensei: aqui, a história não congela; sangra. Cheguei como estudante de doutorado em Ciência Política, para uma mobilidade académica de seis meses, e logo percebi que a Bósnia é um quebra-cabeça onde cada peça é um paradoxo. Um país onde o futuro se negocia diariamente entre as sombras de uma guerra que teima em não acabar, e o frágil brilho de uma esperança que insiste em não morrer.
Os meus dias na Universidade de Sarajevo foram uma imersão num laboratório vivo de conflitos não resolvidos. Os académicos bósnios falam de política com a urgência de quem sabe que as teorias não são abstrações, mas ferramentas para decifrar uma realidade fracturante. O Acordo de Dayton, que em 1995 pôs fim ao conflito, criou uma paz precária, congelando as divisões étnicas em estruturas de poder quase intocáveis 3. Hoje, a Bósnia funciona como um estado com três almas: uma sérvia, outra croata, outra bósnia—cada uma puxando para o seu lado, enquanto o país navega à deriva no mar da geopolítica europeia.
A crise política é omnipresente. Durante a minha estadia, a liderança da Republika Srpska (RS) ameaçava regularmente com a secessão, desafiando abertamente o Tribunal Constitucional e o Alto Representante internacional 3. Do outro lado, os partidos croatas do HDZ bloqueavam instituições, exigindo reformas eleitorais que aprofundassem a ethnicização do sistema 3. O resultado? Um estado paralisado, onde a formação de governos leva meses, e as leis urgentes—economia, saúde, migrações—ficam reféns de jogos de poder.
Mas a Bósnia não é apenas um campo de batalha para elites nacionalistas. É também um palco de resistência silenciosa. Conheci jovens—sérvios, croatas, bósnios—que criam startups juntos, organizam festivais de cinema interétnicos, e discutem Europa num pub de Sarajevo com mais fé no futuro do que os seus líderes. Eles sabem que o status quo é insustentável. A economia está estrangulada pela corrupção e pela fuga de cérebros; quase 20% da população emigrou desde a guerra 3. Os que ficam exigem mudanças—não por decreto internacional, mas por vontade própria.
A União Europeia é ao mesmo tempo farol e miragem. Em 2022, a Bósnia obteve o estatuto de candidato, mas não por mérito próprio: foi uma decisão geopolítica, influenciada pela guerra na Ucrânia 3. A mensagem é clara: Bruxelas teme a instabilidade, mas não sabe como resolver o labirinto bósnio. A integração europeia exige reformas profundas—fortalecer o estado de direito, desmantelar redes corruptas, unificar o mercado—mas como fazê-lo num país onde até a polícia está dividida por etnias? 3
O meu guia em Mostar, um homem que perdeu a família na guerra, disse-me algo que ecoou: "Dayton salvou-nos a vida, mas condenou-nos a viver em gavetas. O futuro só chegará quando fecharmos as feridas, não quando as escondermos." Esta é a ironia trágica: a paz foi construída sobre a segregação, e agora é preciso desconstruí-la para haver progresso.
Os cenários para o futuro são vários, nenhum simples.
Estagnação: O cenário mais provável. As elites continuam a sabotar o estado para preservar privilégios, e a Bósnia mantém-se num limbo, dependente de fundos internacionais e à mercê de crises periódicas.
Fragmentação: Se a RS avançar com a secessão, o país poderá mergulhar numa nova violência. A comunidade internacional interviria, mas a um custo humano e político devastador.
Reforma: Um cenário improvável, mas não impossível. Pressão externa (UE, EUA) e mobilização interna poderiam forçar uma revisão constitucional que criasse um estado verdadeiramente multiétnico, com cidadania igual para todos, não apenas direitos para grupos.
O que aprendi na Bósnia é que o futuro não será ditado por diplomatas em Bruxelas ou por nacionalistas em Banja Luka. Está a ser construído nas ruas de Sarajevo, nas salas de aula da universidade, nos cafés onde gerações mais novas se recusam a herdar o ódio dos pais. A Bósnia é um teste à resistência da ideia europeia—e à capacidade humana de reconciliar o irreconciliável.
Ao partir, lembro-me das palavras de um professor sérvio-bósnio: "Somos um país que ainda chora os seus mortos, mas já planta árvores para os vivos." O futuro da Bósnia não está escrito. Está a ser disputado, todos os dias, com uma coragem quieta que o mundo precisa de ver.
Nota: Esta crónica baseia-se na experiência directa do autor e em relatórios de organizações internacionais citados. Os nomes próprios foram omitidos para proteger identidades.
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