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O Som dos Sinos e o Chamado à Oração: Fé e Divisão na Bósnia

DE SARAJEVO — Ao amanhecer em Sarajevo, os sinos da catedral católica ecoam sobre os telhados da cidade. Poucas horas depois, o chamado do muezim da mesquita de Gazi Husrev-beg preenche os vales entre as montanhas. Ao final da tarde, o badalar dos sinos da igreja ortodoxa sérvia junta-se a esta sinfonia espiritual. Três chamados, três fé, um mesmo céu. Esta paisagem sonora quotidiana poderia ser um símbolo de tolerância perfeita. Mas na Bósnia, nada é tão simples quanto parece. A fé aqui não é apenas um caminho para a transcendência; é também um marcador de identidade étnica, uma fronteira invisível e, por vezes, uma arma política.

A relação entre a Igreja Ortodoxa Sérvia, a Igreja Católica Croata e a comunidade islâmica da Bósnia é um microcosmo das complexidades do país. Durante a guerra de 1992-1995, as instituições religiosas foram instrumentalizadas para legitimar narrativas nacionalistas. Mesquitas, igrejas e mosteiros não foram apenas danificados ou destruídos como actos de guerra; foram alvos simbólicos. A destruição da mesquita Ferhadija em Banja Luka, em 1993, ou da ponte de Mostar (uma obra do período otomano), não foram acidentes de guerra. Eram mensagens claras: apagar a presença do Outro.

Hoje, décadas após o conflito, a reconstrução física desses locais de culto está largely concluída. A mesquita Ferhadija foi reinaugurada em 2016, um feito simbólico apoiado pela comunidade internacional . A catedral católica de Mostar, destruída durante a guerra, foi também reconstruída. No entanto, a reconciliação espiritual está longe de estar completa. As comunidades frequentemente vivem lado a lado, mas não verdadeiramente juntas.

A Igreja Ortodoxa Sérvia, profundamente ligada à identidade nacional sérvia, mantém uma posição ambígua. Por um lado, o seu patriarca, Porfírio, fez gestos públicos de reconciliação, incluindo uma visita histórica a Sarajevo . Por outro, a Igreja continua a ser um pilar do nacionalismo sérvio na República Srpska, apoiando tacitamente—ou pelo menos não criticando—as retóricas secessionistas de líderes como Milorad Dodik. A beatificação do padre ortodoxo sérvio Momčilo Đujić, um controverso líder nacionalista da Segunda Guerra Mundial, em 2023, foi vista por muitos bosníacos como uma provocação .

A Igreja Católica, representando principalmente os croatas da Bósnia, enfrenta o seu próprio dilema. É uma voz a favor da integração europeia e de valores multiculturais, mas também é guardiã da identidade nacional croata. O cardeal Vinko Puljić tem sido uma voz moderada, defendendo os direitos dos croatas mas também o diálogo . No entanto, a existência de escolas separadas e a segregação informal em cidades como Mostar mostram como a fé e a etnia permanecem entrelaçadas.

A comunidade islâmica, liderada pelo Grande Mufti Husein Kavazović, talvez enfrente o desafio mais difícil. Representa não apenas uma fé, mas a identidade do povo bosníaco, a principal vítima do genocídio de Srebrenica. Kavazović tem sido uma voz corajosa a favor do diálogo inter-religioso, condenando o extremismo e visitando sobreviventes sérvios e croatas . No entanto, a comunidade islâmica é frequentemente olhada com desconfiança por parte dos outros grupos, alimentada por estereótipos islamofóbicos e pelo trauma da guerra.

O Acordo de Dayton, que pôs fim à guerra, consagrou a divisão étnica e, por extensão, religiosa. O sistema político baseia-se em quotas étnicas, e a educação está largamente segregada. Em muitas escolas, as crianças sérvias, croatas e bosníacas estudam sob o mesmo tecto, mas em salas separadas, aprendendo histórias e versões da guerra diferentes . A religião é ensinada como uma disciplina separada, aprofundando as divisões.

Apesar destes desafios, há sinais de esperança. Iniciativas de base, como o Pontanima, um coro inter-religioso que canta em igrejas, mesquitas e sinagogas, mostram que a coexistência é possível . O Centro Inter-religioso de Sarajevo facilita o diálogo entre líderes religiosos, focando-se em questões práticas como a ajuda humanitária e a educação para a paz . Após as cheias de 2014, líderes religiosos trabalharam lado a lado para prestar auxílio, mostrando que a cooperação é possível quando há uma crise comum.

O futuro das relações inter-religiosas na Bósnia dependerá da capacidade de estas instituições transcendam as suas funções identitárias e se tornem verdadeiras agentes de reconciliação. Como me disse um jovem estudante de teologia em Sarajevo: "Deus não é sérvio, croata ou bosníaco. Somos nós que O tornamos pequeno."

A verdadeira fé na Bósnia não se mede pela frequência aos cultos, mas pela coragem de estender a mão àquele que é diferente. O som dos sinos e do chamado à oração continuarão a ecoar. A questão é se serão um convite à divisão ou a uma harmonização mais ousada.




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