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Mostrando postagens de janeiro, 2024

O Impacto da Globalização na Juventude Bósnia: Entre a Tradição e a Modernidade

DE MOSTAR - Viver esses meses na Bósnia é testemunhar, todos os dias, o delicado equilíbrio entre passado e futuro. Em Sarajevo, nas ruas estreitas e nos cafés iluminados pelo sol de outono, jovens cruzam olhares, risos e conversas rápidas sobre tecnologia, música, política e planos para o futuro. Mas há algo mais profundo por trás dessa movimentação cotidiana: um constante diálogo interno sobre como conciliar tradições familiares e comunitárias com um mundo globalizado que parece não esperar por ninguém. Conversei com algumas pessoas e percebi a tensão quase tangível entre os legados da guerra e a pressão de se inserir em uma economia e cultura global. Muitos expressavam orgulho pelas raízes bósnias, pelo costume de reunir a família aos domingos, pelas festas locais e celebrações religiosas, mas também demonstravam ansiedade em relação às oportunidades de carreira, viagens e aprendizado em outros países. Não posso ter uma visão completa, mas senti diferentes verdades nos olhares, uma ...

A Sombra da Guerra: Como a Memória Molda a Política Externa da Bósnia

DE MOSTAR — O peso da história na Bósnia não se mede apenas nos cemitérios ou nos edifícios marcados pelas balas. Ele habita os corredores do poder, assombra as relações diplomáticas e dita os ritmos de uma política externa definida por uma pergunta incessante: como reconciliar justiça com sobrevivência? Vinte e oito anos após o fim da guerra, a memória do conflito ainda é uma ferida aberta que sangra nas relações com os vizinhos e nas negociações com as potências internacionais. A guerra de 1992-1995 não terminou com os Acordos de Dayton; congelou-se. Essa é a sensação que se tem ao falar com diplomatas, académicos e cidadãos comuns na Bósnia de hoje. A justiça — ou a falta dela — tornou-se o eixo invisível em torno do qual gira a política externa do país. Para a Bósnia, a busca por reconhecimento do genocídio de Srebrenica e dos crimes de guerra não é apenas uma questão moral; é uma batalha identitária. As relações com a Sérvia e a Croácia são o exemplo mais claro desse "efeito ...

A “Economia da Esperança”: Cooperativas e Solidariedade em uma Bósnia Pós-Guerra

DE DONJI AGIĆI - Passar esses meses na Bósnia é testemunhar, a cada esquina e em cada comunidade, o esforço silencioso de reconstrução social. As cidades e vilarejos carregam cicatrizes visíveis da guerra — prédios marcados por balas, ruas que preservam buracos de bombas, placas que lembram os desaparecidos —, mas também revelam a determinação das pessoas em recuperar não apenas a economia, mas a confiança perdida. É nesse cenário que florescem iniciativas sociais, cooperativas locais e projetos de solidariedade que, embora pequenos, carregam o peso de uma esperança coletiva. Durante minhas visitas, tive a oportunidade de conhecer cooperativas agrícolas em regiões periféricas do país, de norte a sul. Produtores locais, de diversas idades, me receberam com sorrisos e orgulho, mostrando os produtos cultivados, os processos de organização comunitária e a importância de trabalhar juntos para criar oportunidades de renda. Em um pequeno centro de agricultura comunitária, um agricultor explic...

As Cartografias do Conflito: Fronteiras Invisíveis e o Mapa Étnico da Bósnia

DE SARAJEVO - A primeira neve do inverno cobriu os telhados de Sarajevo com um manto silencioso, escondendo sob a sua brancura as cicatrizes que a guerra gravou na pedra e na memória. Estava fora da capital e havia retornado há poucos dias. Um estudante estrangeiro com um caderno na mão e a ingenuidade de quem acredita que os mapas se desenham apenas em papel. Nesta altura, já havia aprendido que a verdadeira cartografia da Bósnia é invisível, um labirinto de fronteiras étnicas e feridas históricas que se estendem muito para além dos acordos de paz de Dayton. Caminhar pelas ruas de Sarajevo é sempre uma lição de geografia humana. Não importa quantas vezes faça, sempre estará cercado de lições. Na rua Ferhadija, o alfabeto muda subtilmente do latino para o cirílico, e os cafés, embora cheios de um murmúrio comum, parecem agrupar-se em torno de bandeiras invisíveis. Os jovens bebem os seus kavas e cervejas, mas as conversas, por vezes, evitam os mesmos temas que os seus pais evitam. Dayt...

A Arquitetura da Guerra: Como a Bósnia Está Reconstruindo Seu Passado

DE SARAJEVO — Mais um dia a caminhar e refletir nas ruas de Sarajevo entre o bairro onde estou a viver e a Universidade. Cada edificação conta uma história de resistência, dor e reconciliação incompleta. Vinte e oito anos após o fim da guerra, a Bósnia ainda luta para reconstruir não apenas seus edifícios, mas também a tessitura social rasgada pelo conflito. A arquitetura, aqui, é muito mais que concreto e pedra: é um espelho das divisões étnicas, um testemunho silencioso da violência e um palco onde se desenrola a complexa relação entre memória e esquecimento. Em Sarajevo, a capital, os edifícios danificados são parte da paisagem urbana. Fachadas crivadas de balas convivem com construções modernas, criando um contraste visceral entre o passado traumático e um presente que tenta se reinventar. A Biblioteca Nacional, incendiada em 1992 durante o cerco, é talvez o símbolo mais potente dessa dualidade. Reconstruída meticulosamente, sua fachada renasceu, mas os interiores abrigam agora...

O Solo Dividido: Semear o Futuro num País de Agricultura Fragmentada

DE SARAJEVO – O escritório da FAO em Sarajevo fica perto do bairro onde estou a viver. É uma caminhada muito agradável que muitas vezes tinha dificuldade imaginar tudo aquilo em guerra. Atravessava o rio que dividia a cidade, naquele ponto, entre duas forças. Pois bem, a FAO ficava do outro lado do rio. Lá dentro, longe do frio cortante do início de 2024, o ar estava quente e cheirava a café forte, uma herança otomana que permanece como uma das poucas coisas que unem este país complexo e que me enche o peito de boas memórias e lembranças. Fui recebido por um oficial sénior cujo rosto descontraído escondia uma paixão teimosa pelas relações sociais. Me ofereceu um café e ali no restaurante conversamos um bom e longo tempo.  “A agricultura na Bósnia”, começou ele, servindo o café numa pequena chávena, “é o espelho mais fiel do nosso país. E, infelizmente, é um espelho partido.” A sua explicação foi uma viagem pela geografia fracturada da produção alimentar. O Acordo de Dayton, que pac...

Banja Luka: Entre Memória, Terra e Hospitalidade

DE BANJA LUKA - Depois de alguns meses em Sarajevo, fui até o norte do país, em Banja Luka. A cidade me trouxe uma sensação diferente de todas as experiências anteriores. Capital da República Srpska, exala uma calma quase ordenada. As ruas largas e arborizadas contrastam com as vielas estreitas e sinuosas de Sarajevo; os edifícios austro-húngaros dialogam com construções modernas, criando uma paisagem que mistura tradição e pragmatismo contemporâneo. A cada passo, parecia que a cidade respirava história, mas de uma forma diferente: menos frenética, mais introspectiva, quase como se cada pedra guardasse lembranças e memórias de quem construiu e reconstruiu o lugar. Um dos aspectos mais marcantes da visita foi conhecer a história da comunidade judaica em Banja Luka. Antes da Segunda Guerra Mundial, a cidade abrigava uma pequena, porém ativa, população judaica. Com o Holocausto, muitos foram deportados ou assassinados, e a comunidade praticamente desapareceu. Hoje, poucos descendentes...

O Papel da Mídia na Formação da Memória Coletiva: Ecos da Guerra e Narrativas do Presente

DE MOSTAR - Não me canso de dizer que estar por aqui é o mesmo que caminhar por uma terra onde a memória ainda pulsa em cada rua, praça e edifício. E, nesse espaço marcado pelo passado recente, percebi o poder quase tangível da mídia na construção da narrativa coletiva. Jornais, emissoras de televisão, rádios e, mais recentemente, redes sociais, moldam não apenas a forma como os bósnios veem a si mesmos, mas também a maneira como o mundo entende o país. Acredito que na década de 90 a imprensa tinha o mesmo impacto no caso do Brasil. A memória coletiva, tão delicada e fragmentada, depende de histórias contadas e recontadas, algumas precisas, outras moldadas por interesses políticos ou emocionais. Nas minhas muitas conversas, ficou claro que a mídia exerce um papel ambíguo. Por um lado, preserva testemunhos de sobreviventes, recorda eventos históricos e mantém viva a memória das vítimas; por outro, muitas vezes reforça narrativas seletivas, reforçando divisões étnicas e alimentando perce...

O Futuro da Bósnia: Entre o Passado que Persiste e a Esperança Teimosa

DE SARAJEVO — A primeira vez que vi Sarajevo sob a neve, pensei: aqui, a história não congela; sangra. Cheguei como estudante de doutorado em Ciência Política, para uma mobilidade académica de seis meses, e logo percebi que a Bósnia é um quebra-cabeça onde cada peça é um paradoxo. Um país onde o futuro se negocia diariamente entre as sombras de uma guerra que teima em não acabar, e o frágil brilho de uma esperança que insiste em não morrer. Os meus dias na Universidade de Sarajevo foram uma imersão num laboratório vivo de conflitos não resolvidos. Os académicos bósnios falam de política com a urgência de quem sabe que as teorias não são abstrações, mas ferramentas para decifrar uma realidade fracturante. O Acordo de Dayton, que em 1995 pôs fim ao conflito, criou uma paz precária, congelando as divisões étnicas em estruturas de poder quase intocáveis 3. Hoje, a Bósnia funciona como um estado com três almas: uma sérvia, outra croata, outra bósnia—cada uma puxando para o seu lado, enquant...