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Mostrando postagens de 2023

A Alma Inquieta da Bósnia: Como a Arte Reergue um País das Cinzas

DE SARAJEVO - Há lugares onde o peso da história se sente não só nos monumentos quebrados ou nos edifícios crivados de balas, mas no próprio ar que se respira. Cheguei à Bósnia como estudante em mobilidade académica, esperando estudar a reconstrução pós-guerra através de livros e gráficos. Mas a verdadeira lição veio das ruas, dos cafés, dos cinemas e dos olhares daqueles que carregam memórias que muitos de nós só conhecemos através de ecrãs distantes. A Bósnia é um país de contrastes profundos, onde a dor e a beleza coexistem com uma intensidade rara, e onde a cultura—o cinema, a literatura, a arte—não é um luxo, mas uma necessidade vital, uma forma de exorcizar fantasmas e reencontrar a humanidade perdida. Caminhar por Sarajevo é percorrer um palimpsesto de culturas e conflitos. A herança otomana mistura-se com o legado austro-húngaro, e em cada esquina há um lembrete do cerco dos anos 90, que durou quase quatro anos e definiu uma geração. Mas é precisamente nesta cidade ferida que o...

As Arquitetas do Amanhã: O Papel Invisível das Mulheres na Reconstrução da Bósnia

DE BJIELINA - Cheguei à Bósnia com a mente carregada de estatísticas sobre a guerra, mas foram as mulheres que me ensinaram a verdadeira meaning da resiliência. Enquanto os acordos de Dayton desenhavam novas fronteiras sobre mapas em 1995, eram elas que, nas cozinhas de sobrevivência e nos campos de refugiados, teciam os fios invisíveis de uma nação despedaçada. Esta crónica é sobre essas arquitectas silenciosas da paz—as mulheres bósnias que transformaram luto em labor, trauma em ternura, e que hoje, quase três décadas depois, continuam a carregar nas costas o peso e a promessa de um país que renasce das cinzas. Caminho pelo mercado de Markale em Sarajevo, onde em 1994 um massacre matou 68 pessoas. Hoje, flores e negociantes enchem o espaço, e é difícil não notar que a maioria dos rostos por trás das bancas são femininos. São viúvas, sobreviventes, mães que perderam filhos. Mulheres como Fatima, que me diz enquanto arruma tomates: "Os homens foram à guerra ou morreram. Nós ficámo...

A Longa Sombra de Dayton: A Bósnia e o Labirinto da Integração Europeia

DE SARAJEVO - Há uma ironia histórica profunda no facto de a Bósnia e Herzegovina, um país cuja identidade foi forjada na encruzilhada de impérios, hoje lutar por um lugar numa Europa que hesita em abraçá-la. Cheguei aqui como estudante de mestrado para investigar o processo de integração europeia, um tema que parece abstracto em Bruxelas mas é visceral nas ruas de Sarajevo. O que encontrei foi um labirinto político onde a esperança e o ceticismo coexistem, onde os fantasmas de Dayton assombram cada passo em direcção à União Europeia, e onde os cidadãos—especialmente os jovens—veem na Europa não apenas um projecto económico, mas uma promessa de normalidade. A jornada da Bósnia em direcção à UE é única porque é, em si mesma, um teste à capacidade de expansão e aos valores fundamentais da União. O país apresentou a sua candidatura em 2016, mas o processo arrasta-se num emaranhado de condições e reformas que parecem, por vezes, desenhadas para uma realidade paralela. A arquitectura políti...

A Juventude Bósnia: Entre o Desencanto e a Semente da Mudança

DE MOSTAR — Em um café no centro de Sarajevo, Adnan, de 24 anos, termina o seu café turco com a lentidão de quem adia o inevitável. Na mesa ao lado, um grupo de amigos ri alto, mas o som parece não alcançá-lo. "Estou a preparar a minha despedida", diz, com um sorriso amargo. "Daqui a dois meses, parto para Munique. Aqui, o futuro é uma promessa que nunca chega." A sua história não é única: é o retrato de uma geração que cresceu entre os escombros de uma guerra que não viveu, mas que carrega como uma herança pesada. A Bósnia e Herzegovina é um país envelhecido pela emigração. Desde 2013, mais de 500.000 pessoas abandonaram o território, a maioria jovens em busca de oportunidades que o seu país lhes nega. O desemprego juvenil ronda os 30%, e a economia—a mais frágil da Europa—oferece poucas alternativas à precariedade ou ao exílio 9. Os que ficam, confrontam-se com um sistema educativo fragmentado por divisões étnicas, onde 94% das escolas operam com currículos monoét...

O Impacto da Migração e da Diáspora Bósnia: Entre a Fuga e a Esperança

DE BRATUNAC — A história da Bósnia e Herzegovina é, em grande medida, uma história de partidas e regressos interrompidos. Num café de Sarajevo, onde o cheiro do café turco se mistura com o murmúrio de conversas em várias línguas, um jovem estudante de engenharia confessa: "Aqui, sonhamos com o estrangeiro desde que aprendemos a andar." Esta não é apenas uma observação casual; é o reflexo de uma realidade profundamente enraizada. A migração—seja forçada pela guerra ou motivada pela economia—moldou a identidade, a política e a alma deste país balcânico, deixando um rastro de perdas, mas também de resiliência silenciosa. A diáspora bósnia é uma das maiores da Europa. Desde a guerra de 1992-1995, que deslocou um quarto da população, até à emigração económica acelerada da última década, mais de 500.000 pessoas abandonaram o país. Os números são mais do que estatísticas: são histórias de famílias divididas, de cérebros drenados, de aldeias envelhecidas. Um estudo de 2023 revela que...

O Som dos Sinos e o Chamado à Oração: Fé e Divisão na Bósnia

DE SARAJEVO — Ao amanhecer em Sarajevo, os sinos da catedral católica ecoam sobre os telhados da cidade. Poucas horas depois, o chamado do muezim da mesquita de Gazi Husrev-beg preenche os vales entre as montanhas. Ao final da tarde, o badalar dos sinos da igreja ortodoxa sérvia junta-se a esta sinfonia espiritual. Três chamados, três fé, um mesmo céu. Esta paisagem sonora quotidiana poderia ser um símbolo de tolerância perfeita. Mas na Bósnia, nada é tão simples quanto parece. A fé aqui não é apenas um caminho para a transcendência; é também um marcador de identidade étnica, uma fronteira invisível e, por vezes, uma arma política. A relação entre a Igreja Ortodoxa Sérvia, a Igreja Católica Croata e a comunidade islâmica da Bósnia é um microcosmo das complexidades do país. Durante a guerra de 1992-1995, as instituições religiosas foram instrumentalizadas para legitimar narrativas nacionalistas. Mesquitas, igrejas e mosteiros não foram apenas danificados ou destruídos como actos de guer...

A Justiça Inacabada: Memória e Feridas Abertas na Bósnia

DE MOSTAR - Trinta anos após o fim da guerra que matou mais de 100 mil pessoas e deixou um rastro de destruição física e moral, a Bósnia-Herzegovina ainda caminha sobre o fio da navalha entre a reconciliação e a fragmentação. Cheguei aqui como estudante em mobilidade académica, esperando analisar os processos de justiça de transição, mas deparei-me com uma realidade onde o passado não é apenas história: é uma presença viva, que molda cada aspecto da sociedade, da política ao tecido social. A justiça de transição, concebida para curar feridas, parece muitas vezes ampliá-las, num país onde a verdade judicial convive com a negação política e a dor das vítimas é instrumentalizada por elites que preferem o conflito à conciliação. O Acordo de Dayton, assinado em 1995, trouxe o fim dos combates, mas cristalizou divisões étnicas que hoje impedem a construção de um futuro comum. A arquitectura política que criou duas entidades autónomas – a Federação Croata-Muçulmana e a República Srpska – tran...

A Identidade Nacional Bósnia e as Relações Interétnicas: Um Quebra-Cabeças Inacabado

DE SARAJEVO — Em um pequeno café no centro de Sarajevo, um homem idoso aponta para três chávenas sobre a mesa: uma de café turco, outra com chá e uma terceira vazia. "Esta é a Bósnia", diz, com um sorriso cansado. "Três sabores, um mesmo lugar. Às vezes misturam-se, outras vezes permanecem separados. Mas a mesa é uma só." A metáfora, como tudo neste país, é perfeita e incompleta. A identidade nacional bósnia não é uma essência imutável, mas um campo de batalha onde histórias, traumas e esperanças se chocam diariamente. O Acordo de Dayton, que pôs fim à guerra em 1995, não apenas parou a matança: ele congelou as identidades em categorias rígidas. A Constituição do país reconhece três "povos constituintes": bósnios (muçulmanos), sérvios (ortodoxos) e croatas (católicos). Os outros—judeus, roma, ou simplesmente aqueles que se recusam a ser definidos pela etnia—são oficialmente "Outros", cidadãos de segunda classe ineligible para a presidência ou out...

A Economia da Bósnia no Pós-Guerra: Entre as Cicatrizes e a Esperança de Florescer

DE SARAJEVO — Há uma ironia cruel na forma como a economia da Bósnia e Herzegovina respira: ofegante, como se ainda carregasse o peso dos escombros de uma guerra que tecnicamente terminou há três décadas. O Acordo de Dayton, que em 1995 silenciou as armas, não curou as feridas económicas; pelo contrário, consagrou-as em estruturas políticas disfuncionais que até hoje estrangulam o potencial de um país que já foi o coração industrial da Jugoslávia. A economia bósnia é um paciente que sobreviveu à cirurgia de emergência, mas nunca quite recuperou os movimentos plenos. A guerra deixou um rasto de devastação material e humana quase incompreensível. O Produto Interno Bruto (PIB) colapsou para menos de 10-30% dos níveis pré-guerra, e o país perdeu mais de 75% da sua capacidade económica. Cidades inteiras foram reduzidas a escombros, infraestruturas energéticas e industriais foram sistematicamente destruídas, e mais de 80% da população dependia de ajuda alimentar internacional para sobreviver...

O Acordo de Dayton e Seus Limites

DE SARAJEVO - Já se passaram semanas desde que me instalei em Sarajevo, e a cidade, com seu ritmo lento, ruas estreitas e cafés iluminados pelo dourado do outono, se tornou um laboratório constante de observação e reflexão. A paz formal, garantida pelo Acordo de Dayton, parece sólida no papel: edifícios reconstruídos, placas oficiais indicando a divisão entre Federação da Bósnia e Herzegovina e República Srpska, presidência tríplice. No entanto, caminhar pelas ruas, sentar-se nos cafés, ouvir conversas ao acaso, perceber os olhares cautelosos e, por vezes, desconfiados, é perceber que a paz vivida e a paz decretada nem sempre coincidem. A cidade carrega cicatrizes que nem mesmo o tempo consegue suavizar totalmente, e a arquitetura — reconstruída, mas marcada por balas e bombardeios — é uma testemunha silenciosa dessa tensão. Em encontros com estudantes universitários, jovens artistas e comerciantes, percebi a distância entre a promessa de Dayton e a realidade cotidiana. Um estudante me...

O Peso da Memória: Voltar a Srebrenica

DE SREBRENICA – A primeira vez que vim a Srebrenica foi há dez anos. Acompanhado por um amigo, chegámos numa tarde de verão muito parecida com esta de 2023. Lembro-me do silêncio pesado que se instalou no carro à medida que nos aproximávamos, da paisagem idílica das montanhas da Bósnia Oriental que parecia ironicamente tranquila. Nada – nem os livros, nem os relatórios, nem mesmo o poderoso filme Quo Vadis, Aida? que mais tarde viria a estudar – me preparou para o que senti ao pisar aquele solo. Foi um choque mudo e profundo, uma sensação física de estar num lugar onde o ar itself é diferente, mais denso, carregado por uma memória de horror que é quase tangível. Uma década depois, regressei. E, para meu espanto, a primeira sensação foi exactamente a mesma: uma ligeira falta de ar, uma aura pesada que envolve o vale de Srebrenica logo à entrada. É algo que os livros de história não transmitem: a física do sofrimento, a geografia do trauma. O Memorial de Potočari, com as suas mais de oit...

As Geometrias da Memória: Arquitetura Iugoslava na Bósnia e os Ecos de Brasília

DE SARAJEVO - O sol da tarde desenha ângulos agudos sobre os blocos de concreto de Gbravica, em Sarajevo. Caminho entre edifícios que se erguem como esculturas funcionais, linhas retas, varandas suspensas, pilotis que sustentam não apenas estruturas, mas histórias. Há algo de profundamente familiar neste cenário. Talvez seja a sombra dos pilotis, idênticos aos da Asa Norte de Brasília, onde nasci. Ou talvez seja o ritmo das fachadas, aquela gramática modernista que fala uma língua que meu corpo reconhece antes mesmo que minha mente decifre. A arquitetura iugoslava na Bósnia é um paradoxo geopolítico moldado em concreto. Entre as décadas de 1950 e 1980, surgiu aqui um modernismo híbrido: socialista na escala, mas dissidente na estética. Enquanto o realismo socialista soviético erguia palácios neoclássicos para glorificar o Estado, a Iugoslávia de Tito, livre da Cortina de Ferro, abraçou o brutalismo e o regionalismo crítico. Edifícios como o Elektroprivreda Building (1978), de Ivan Štra...

Entre Sons e Palavras: O Prazer de Aprender o Balcânico

DE BRATUNAC - Aprender um idioma para mim é sempre uma grande descoberta. Se tivesse mais tempo me dedicaria mais aos tantos idiomas que gostaria de aprender. Talvez por isso, cada novo vocabulário, cada conjugação difícil ou construção gramatical estranha, se tornem parte de um jogo interessante que se estende além da obrigação, mais para o campo do lazer do que do trabalho. Não sou fluente em nenhuma das línguas que estudo, mas isso nunca foi uma questão. No entanto, ao chegar aqui, em Sarajevo, a língua bósnia-sérvia-croata, que eu mesma, por conveniência, chamei de "balcânico", entrou na minha vida como uma leve exigência do cotidiano, uma pequena chave que abre portas para compreender um pouco mais da realidade que me cerca. Este idioma não estava entre os primeiros da minha lista de línguas a aprender. Em um primeiro momento, ele parecia distante, uma sequência de sons que não se encaixavam de imediato no meu universo fonético. Mas como tudo em Sarajevo parece ter um so...

Sarajevo sob a Sombra do Carvalho com Alija Izegobovitch

DE SARAJEVO - Sarajevo acorda envolta em névoa, essa mortalha úmida que parece proteger as cicatrizes da cidade. No cemitério de Kovači, onde as lápides brancas se alinham como um exército silencioso, busco o túmulo de mármore verde. Ali repousa Alija Izetbegović, jurista, poeta e comandante involuntário, cuja vida é um espelho partido refletindo os paradoxos dos Bálcãs. O ar cheira a café turco e terra lavada pela chuva noturna. Nas ruas íngremes, turistas fotografam cafés da moda enquanto senhoras de xale negro depositam crisântemos nos túmulos dos šehids, os mártires. Esta é a coreografia diária de uma cidade que aprendeu a dançar sobre suas feridas. No Museu Alija Izetbegović, um exemplar gasto de O Islã entre Oriente e Ocidente jaz aberto sob vidro. As margens rabiscadas revelam um homem que debatia Spengler e Rumi enquanto a Iugoslávia desmoronava. "Para ele, a Bósnia não deveria ser trincheira, mas ponte", sussurra o curador, apontando para a foto que congela um moment...

Iugonostalgia:Tito e as Sombras da Iugoslávia

DE MOSTAR - Para quem vem de terras longínquas como eu, ir de Sarajevo para Belgrado não é mistério. Pelo contrário, é mesmo perto e recomendável. Aproveitei o período de mobilidade em Sarajevo para ficar um mês em Belgrado, antiga capital da Iugoslávia - não podia perder essa chance. Afinal, nasci em uma época curiosa em que a Iugoslávia era entendida como o meio do caminho, entre o mundo desenvolvimento e o mundo em desenvolvimento, o chamado países do segundo mundo. Em Belgrado, o frio fazia com o que o dia estivesse maravilhoso. O murmúrio da vida cotidiana me trouxeram uma sensação inesperada de nostalgia, aquele tempo que não volta mais, mas está ali em algum registro da nossa história. Não é uma saudade qualquer, mas uma nostalgia cheia de camadas e ambiguidades, uma espécie de iugonostalgia, saudade da antiga Iugoslávia. Um país que, embora não exista mais, ainda paira sobre a memória coletiva da região e de muitos como eu que tiveram a oportunidade de acompanhar a Iugoslávia p...

O Legado de Gazi Husrev Bey na Jerusalém da Europa: Sarajevo

DE SARAJEVO - Hoje resolvi sair para um passeio a pé com um colega local da Universidade. Foi uma dessas manhãs claras que se desdobram lentamente, como se o tempo estivesse de acordo com a cidade, suave e sem pressa. Fomos fazer uma caminhada e à medida que a conversa fluía entre cafés e palavras, ele, com seu entusiasmo característico, começou a falar sobre a história da cidade. Eu, de certa forma, já sabia o essencial, mas o que ele me disse em frente à imponente mesquita de Gazi Husrev Bey mexeu comigo de uma maneira que ainda não consegui definir completamente. Gazi Husrev Bey não era apenas um nome, mas uma presença tangível, um pilar. Nascido em Serres, ele não apenas liderou expedições militares e expandiu os domínios do Império Otomano em regiões distantes, como Croácia e Hungria, mas também, e talvez mais importante, deixou uma marca profunda na Sarajevo moderna. Uma marca feita de pedras, tijolos e, de certa forma, de destino. Foi ali, em frente à sua mesquita, que meu amigo...